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É melhor já ir o quê? Tradutores (novamente) no fogo cruzado das contendas político-ideológicas

É melhor já ir o quê? Tradutores (novamente) no fogo cruzado das contendas político-ideológicas

Não há novidade alguma em se dizer que a tradução e a interpretação podem ser tarefas, mais que perigosas, mortais.

No campo da História da Tradução (e aqui estou me deixando guiar pelo delicioso volume de Delisle e Woodsworth, Os tradutores na história), questões de ordem político-ideológica estiveram na linha de frente para homens como Martinho Lutero, John Wycliffe e William Tyndale; a Reforma e a Contra-Reforma são, sem exageros, um gigantesco problema de tradução.

No Renascimento, em meio a essas mesmas contendas, traduzir um volume vernáculo de conteúdo controverso para o latim significava, ao mesmo tempo, preservá-lo e abri-lo a inúmeras alterações: as práticas tradutórias da época não pressupunham nosso conceito moderno de propriedade intelectual, que ainda estava sendo desenvolvido; edições em latim eram consideradas edições standard, e portanto sujeitas a mais cuidadoso trabalho editorial, mas também a acréscimos e supressão de conteúdo e, em alguns casos, descarada mudança de orientação ideológica.

Mais contemporaneamente, estudiosas como Mona Baker se debruçam sobre a interpretação em zonas de conflito; erros de tradução também tiveram impacto sobre o desenrolar de algumas guerras. Finalmente, em seu ensaio A era da tradução: tecnologia, tradução e diferença, Michael Cronin também realizou um traçado de estratégias de resistência tradutória e conflito cultural em textos aparentemente insuspeitos, como brochuras de viagem. (Os ensaios de Baker e Cronin podem ser consultados em Tradução e relações de poder.)

A era digital trouxe um novo campo para esse embate. Tradutores, como mediadores culturais (e políticos), estão na linha de frente entre culturas e, portanto, entre interesses de dominantes e dominados, opressores e oprimidos.

Os tradutores amadores europeus que deram ao público traduções piratas dos volumes de Harry Potter antes de seu lançamento oficial (a anedota é relatada por Jeremy Munday em seu Introducing Translation Studies) desejavam apenas disponibilizar algo que amavam com os que compartilhavam semelhante amor, mas acabaram gerando um conflito por direitos autorais, esbarrando assim na contenda sobre a quem pertence a cultura. Um artefato simbólico tecnicamente reprodutível não tem a mesma materialidade de um eletrodoméstico: podemos ser donos de uma geladeira, mas, ao comprar um livro, temos em mãos uma cópia de algo que não é nem o papel, nem a tinta, e que só existe de modo pleno no ato da leitura. Esses tradutores demonstraram que, ao fim e ao cabo, ninguém é dono da cultura, e que quem faz dela uso tem direitos sobre ela que não podem ser comercializados ou controlados.

O mais novo ponto de parada nesse mecanismo de desastres (para usar uma expressão pessoana que adoro) foi a série Brooklyn Nine-Nine; segundo reportagem do site Heróis da TV (por sua vez, baseada em texto de The Wrap) os fãs brasileiros apontaram um problema de tradução que lhes pareceu particularmente grave. Ambas as fontes reportam a denúncia ao Twitter:

Os produtores executivos da série tomaram ciência da denúncia de que, na tradução para o português brasileiro, a personagem Charles Boyle estaria usando expressões que denotariam simpatia ao presidente brasileiro eleito em 2018, e não levou isso muito a bem; cabe lembrar que a comunidade artística internacional, ainda durante a campanha eleitoral, demonstrou repúdio público ao presidente eleito, uma vez que os paralelos com o presidente estadunidense eram suficientemente evidentes.

Na trama, Boyle deseja dar à sua equipe um nome, e opta por The Tramps; na versão legendada, isso foi vertido para Os Molengas; na dublada, para Os Mínions (os apoiadores do presidente são chamados bolsomínions, em referência aos asseclas amarelos e acéfalos do protagonista da franquia Meu malvado favorito). De modo ainda mais flagrante, na versão dublada, a expressão É melhor já ir se acostumando foi usada pela mesma personagem para traduzir This year belongs to The Tramps [este ano pertence aos Tramps]. Não obstante, as demais personagens reiteradamente recusam a alcunha coletiva.

O redator da matéria para Heróis da TV sugere que, como tramp e Trump guardam alguma semelhança fonética, o uso de mínions se deve a uma confusão que, nada coincidentemente, reforçaria o paralelo entre os presidentes dos Estados Unidos e do Brasil. Difícil, porém, dizer se se trata realmente de um erro de tradução. De minha parte, não estou seguro que a conjetura esteja correta: um tradutor experiente saberia muito bem diferenciar as vogais de tramp e Trump.

Também é importante pontuar que esse tipo de aclimatação faz parte da tradução humorística: usar subitamente expressões radicadas na cultura-meta para traduzir o texto-fonte é uma estratégica humorística de que somente a tradução consegue lançar mão. A tradução e dublagem da primeira temporada de Os Simpsons deu a Bart falas de Tião Macalé (o popular “nojento!”) e Didi Mocó (“biito”); houve ao menos uma menção ao Domingão do Faustão; em um episódio especial de Dia das Bruxas, ao ficar com a mão presa em uma torradeira, Homer corre pela cozinha gritando: “Sai desse corpo que não é seu!”

Finalmente, note-se que a tradução legendada que aparece nos excertos postados no tuíte verte The Tramps como Os Molengas. Tramp é um termo ofensivo para moradores de rua, pessoas sem destino fixo ou (seguindo o tradicional sexismo das diatribes) mulheres sexualmente ativas. Neste caso, também, não se optou por uma tradução direta do sentido da palavra (na melhor das hipóteses, molenga seria um eufemismo para vagabundo), mas apenas por um termo que seria inadequado ou incômodo como denominação de um coletivo.

Mesmo que não se possa falar abertamente de erro, dada a enorme sensibilidade política envolvendo a eleição de figuras associadas ao espectro fascista, qualquer traço de simpatia por estas figuras, mesmo que venha de uma personagem aparentemente “sem noção”, costuma levar a uma reação imediata, e à perda de reputação e lastro. Uma lição importante, que tradutores vêm aprendendo ao longo da História: traduzir é escolher lados; perde-se a vida para ganhar a liberdade, ou escolhe-se o caminho dos que matam, enganam, silenciam e cerceiam. Erro ou não, foi uma escolha infeliz.