Citações em artigos e os acordos otrográficos: atualizar ou não atualizar, eis a questão
Que todo e qualquer texto técnico, científico ou acadêmico escrito na norma culta do português brasileiro deve seguir e ser revisado conforme o Acordo Ortográfico vigente é algo que nenhum produtor textual desconhece (mesmo quando desconhece o próprio acordo) e de que nenhum discorda (idem); não obstante, essa tarefa nem sempre é facilitada não somente pela incompletude do próprio acordo ortográfico—que não responde todas as perguntas—, mas também, e surpreendentemente, por sua existência.
O primeiro caso é simples de compreender; já comentei sobre a inexistência de diretrizes sobre estrangeirismos; com supresa, aprendi recentemente que performance ainda é um estrangeirismo (o que ficaria óbvio pela ausência do acento, em se tratando de uma proparoxítona, mas o uso às vezes oblitera o conhecimento formal); também desconfio que prefixos como super- e hiper- sejam ainda considerados empréstimos de línguas clássicas, uma vez que, mesmo em seu uso hifenizado, não levam o acento que demanda a regra (compare-se pré-escolar, com prefixo hifenizado acentuado, e super-humano); a coisa se complica ainda mais na fala quotidiana e na escrita digital que a imita, quando tais prefixos parecem adquirir características adverbias e adjetivais (e.g. a encomenda chegou super [súper?] rápido, João é super [súper?] legal).
Um segundo exemplo que posso oferecer diz respeito aos nomes de línguas e povos; o inglês (pessoa ou língua) não recebe maiúscula, mas, em discurso acadêmico, línguas e gentílicos de povos indígenas são grafados em maiúscula pelo discurso científico, talvez por influência das abundantes fontes anglófonas (que os escrevem inequivocamente com maiúscula), como demonstra o excerto abaixo:
Em meio a essa diversidade, apenas 25 povos têm mais de cinco mil falantes de línguas indígenas: Apurinã, Ashaninka, Baniwa, Baré , Chiquitano, Guajajara, Guarani ( Ñandeva, Kaiowá, Mbya), Galibi do Oiapoque, Ingarikó, Huni Kuin, Kubeo, Kulina, Kaingang, Mebêngôkre, Macuxi, Munduruku, Sateré Mawé, Taurepang, Terena, Ticuna, Timbira, Tukano, Wapichana, Xavante, Yanomami, e Ye'kwana.
O Novo Acordo Ortográfico não menciona nomes de línguas e povos em seu rol de iniciais maiúsculas ou minúsculas obrigatórias, e também abre espaço para usos discricionários de maiúsculas. A arbitrariedade é evidente, e tem implicações perigosas: se o inglês é minúsculo, por que o Xavante (dicionarizado em minúscula, diga-se de passagem) não? O que têm de diferente para que mereçam tratamento diferenciado? Não me parece tão simples responder essa questão.
O segundo problema acima levantado—o acordo ortográfico gera problemas ao acordo ortográfico porque existe—é o que verdadeiramente nos interessa; a formulação, claro, é exagerada, e o problema seria mais precisamente descrito como segue: a existência de ao menos três acordos ortográficos ao longo do século XX para a língua portuguesa no Brasil gera problemas para a revisão ortográfica de textos técnicos, acadêmicos e científicos.
Veja bem: se um artigo escrito em 2023 cita um artigo publicado em 1996 ou em 1957, fica evidente que cada um segue seu próprio acordo. A regra é (seria) clara: o artigo deve ser citado tal qual, não se alteram as fontes citadas. Ocorre, porém, que, no interior de um artigo que segue o acordo vigente (por enquanto), há uma citação que segue o anterior, ou o antepenúltimo. O que fazer?
Deixar como está exige cuidados por parte de redator e revisor, o que, por si, aumenta os problemas de redação e revisão, e acarreta noutro problema: o excesso de cuidado gera uma falsa ênfase, sobrecarregando a importância, numa fonte acadêmica, de algo que não é discricionário do autor. Guimarães Rosa cunha neologismos e grafa os nomes de suas personagens de mais de um modo, e seus desvios ortográficos devem ser mantidos; aqueles encontrados em Carolina Maria de Jesus ou Lima Barreto—dois escritores negros, a primeira uma doméstica, o segundo tendo reputação de desleixado em parte da crítica mais antiga—são mais controversos, e sua correção ou manutenção podem ter importantes implicações editoriais e políticas; finalmente, Glauco Mattoso recusa para seus textos a ortografia atual, preferindo a escrita pseudoetimológica anterior a 1940; em qualquer dos casos, trata-se de textos literários, cuja forma importa muitíssimo, e mesmo um lapso flagrante não pode ser corrigido simplesmente por ser um lapso.
Compare-se os casos acima com um êle ou conseqüência, ou mesmo um lapso de revisão contidos em textos científicos, cuja ortografia não é discricionária. Que importância têm mantê-los? Que importância assumo que têm ao mantê-los? Por outro lado, com que direito posso alterar minhas fontes se o discurso científico veda essa interferência e enfatiza a importância teórica e metodológica de um estrito respeito às fontes? Temos aqui um dilema—talvez pequeno para alguns, mas um dilema.
Minha sugestão—essa questão não está estabelecida no Acordo Ortográfico, portanto cada um faça como lhe parecer melhor—seria a seguinte: não faz sentido manter algo que não é decisão do autor e que chama atenção desmesurada; usar um [sic] para apontar um lapso redacional evidente e/ou minúsculo, tampouco. Guarde-se o uso de [sic] para situações nas quais qualquer correção proposta seria incerta e afetaria a interpretação, reserve-se a observância ortográfica rigorosíssima para textos cuja forma importa sobremaneira (literários, filosóficos e históricos, na maioria dos casos), e evitem-se estranhamentos ortográficos não-significativos. O leitor pode consultar por si as fontes que lhe interessarem, e verificar que a discrepância é uma correção ortográfica que não afeta o significado do texto.
Mais importante: este problema é evitado quando citamos com parcimônia; parafrasear o evita. Quanto mais indispensáveis as citações, menor seu número; quanto menor seu número, menor o de possíveis perplexidades ortográficas.