empatia aos odiosos
Gostaria de retomar uma reflexão que, publicada agora, soará talvez pretérita, embora motivada por eventos que aconteceram ao final do ano passado. Também sinto que está ligada a um determinado momento de minha vivência em redes e aplicativos sociais—mais especificamente, ao enorme desânimo que se arrastou ao longo do primeiro ano do governo Bolsonaro, manifesto num sem número de postagens raivosas, pessimistas, clinicamente carentes. Não creio, contudo, que devamos refletir exclusivamente ritmados pela velocidade com que as mídias digitais nos apresentam catástrofes; penso que, motivados por um episódio já curado de viralização, não faria mal revisitarmos certos conceitos a fim de afinarmos nossos sentimentos e, mais importante, os comportamentos digitais deles oriundos.
Em dezembro do ano passado, Karol Eller—uma influencer lésbica de direita, apoiadora de Jair Bolsonaro e contrária à noção de homofobia—, foi vítima dum ataque alegadamente homofóbico, ao beijar a namorada na rua. Antes que a polícia descartasse a possibilidade de crime homofóbico, ao inteirar-se de que a jovem mentira no depoimento, as opiniões da esquerda se proliferaram, pulularam e repartiram: enquanto políticos de esquerda manifestaram apoio e solidariedade à jovem para além de divergências políticas, reforçando sua luta contra a violência homofóbica, uma boa parte dos usurários das redes sociais preferiu apontar a incoerência ou a falta de caráter em se reconhecer vítima de homofobia somente depois de havê-la sofrido; ademais, sentiram-se cobrados por sua falta de “empatia”.
Como ocorre com todo assunto que se torna viral, a discussão agigantou-se em alguns foros—as mídias alternativas postaram seus textos sobre o assunto—e foi super-simplificada em outros, sob a forma de tuítes, memes e seus engajamentos. Todo assunto viral gera uma versão mais simples de si que o impulsiona; neste caso, parece ser a da “obrigação da empatia”. Como, porém, o episódio está atrelado à história recente do Brasil, existem inúmeras implicações a serem consideradas; nem tudo acerca do assunto diz respeito à jovem, ou ao que pensemos ou sintamos a seu respeito. Gostaria de refletir variadamente acerca do caso, e de como podemos compreender nosso comportamento digital a partir dele.
Estamos todos doentes
A primeira coisa a se levar em consideração é que nosso comportamento em rede vem, sim, causando um duplo processo de adoecimento. Por um lado, as já conhecidas angústias causadas pela super exposição de vidas aparentemente perfeitas em redes e aplicativos, e nosso endosso e desenfreada busca pelas formas de recompensa por eles gerados (curtidas, comentários, compartilhamentos, etc.). Por outro, as redes sociais nos permitem estar mal de um modo inédito, pois nelas extravasamos nossas inseguranças, incertezas e infortúnios—esperando talvez uma compreensão que a rede se vê impossibilitada de retornar—, enquanto somos expostos as mazelas de uma quantidade altíssima de pessoas, nem sempre próximas. Desde o início da escalada fascista, estamos acompanhando todo tipo de manifestação extremada, pessimista, apocalíptica. Isso nos fere e agrava nosso próprio mal-estar.
Assim, talvez não seja muito fácil, neste estado, oferecer apoio ou solidariedade a quem no-la vem negando, muitas vezes em tom derrisório. Dar a outra face é uma coisa; dá-la baseado nos mais sinceros sentimentos de compaixão, talvez outra. O Bom Samaritano viu caído ao chão o homem a quem ajudou; se estivéssemos próximos à jovem e à namorada quando foram atacadas, talvez nos portássemos diferentemente, mas, para nós, desde nossos distantes terminais de computador, não passam de idéias, símbolos, representações. E o que nos representam dói duplamente: a violência de que foram vítimas (e que nos ameaça) e a que praticaram contra nós (ao negar a primeira em tom de deboche).
Então, a primeira coisa que diria ao que se sentem “obrigados” à empatia: ninguém tem o direito de lhe dizer que você não sente o que sente. Compaixão para com agressores não é fácil—especialmente quando estamos adoecidos, especialmente quando os agressores são símbolos numa tela, não pessoas ao nosso lado. Não há porque se sentir culpado por não conseguir se solidarizar de modo pleno e plenamente sincero.
Simpatia x empatia
Apesar do que foi dito acima, sempre é possível reagir a um estímulo de mais de um modo. Não conseguir se sensibilizar de modo plenamente humanizado não significa que devamos regozijar no sofrimento alheio—especialmente quando não é tão alheio assim.
Ninguém pode exigir que nos compadeçamos dela desde nossos corações, mas isso não implica que não possamos gerar outros tipos de comportamentos mais humanizados que dizer “bem-feito”. Existe uma diferença fundamental entre simpatia e empatia que muitas vezes nos escapa: simpatia é a sensação de que sentimos a dor do outro tal como ele a sente; é tomar suas dores como nossas; exige, portanto, um alinhamento de pontos-de-vista; por sua vez, a empatia é a capacidade de se colocar mentalmente no lugar do outro, e compreender como pensa ou se sente, sem que necessariamente concordemos com suas atitudes. A simpatia é reservada a quem amamos, pois é uma reação emocional espontânea de quem ama ao se deparar com o sofrimento ou alegria de seres queridos; a empatia vem em momentos de mais fria reflexão, para que nossos princípios, nosso senso de justiça e nosso discernimento possam agir harmonicamente com nossas melhores emoções.
Repare que os políticos de esquerda—estes aos quais defendemos, em quem confiamos e votamos—demonstraram alguma solidariedade, rechaçando embora alinhamento às visões da jovem. Demonstraram empatia com o sofrimento, não simpatia pela pessoa. E o fizeram desde o ponto de vista tático e diplomático de representantes de seres humanos (a comunidade LGBTQIA+) e idéias (a universalidade da igualdade de direitos e da não-violência).
A ausência de simpatia esgota-se na nossa dor pessoal, que nos leva a grande revolta; finda com o “bem-feito!” ou com o “ué, mas você não disse que homofobia era mimimi?”. A empatia nos pede um esforço imaginativo (a empatia é criativa e, portanto, inteligente): todas as pessoas sofrem. Todas. O ser humano mais desprezível que se possa imaginar, a pior pessoa que algoém já conheceu na vida também sofrem. Às vezes, muito. Os oprimidos que tomam o lado dos opressores, como nós, têm medo. Escolhem uma estratégia covarde e egoísta, mas cada um terá sua própria história de vida, e sua própria versão do universo psíquico que os leva a isso. Mas sofrem, como nós. Quando se trata de violência homofóbica, esse sofrimento é, de fato, muito próximo ao nosso, mesmo.
Usuários x militantes
Para contrabalancear o uso de um caso “antigo” com outro mais recente, os fãs de K-pop e usuários do aplicativo TikToK vêm demonstrando não só sua propensão ativista, mas principalmente uma impressionante capacidade de organização: coordenadamente, alegam haver esvaziado comícios do presidente estadunidense Donald Trump, reservando praticamente todos os assentos, e não comparecendo. Pouco antes, já haviam inutilizado hashtags de direita como #AllLivesMatter e #MAGA, usando-as para postar vídeos, gifs e memes relativos ao K-pop.
Este tipo de ação coordenada é mais certamente possível quando há liderança: adolescentes, fãs de K-pop, seguem em massa o apelo de celebridades politicamente engajadas, com resultados excelentes. Em outra ocasião, mencionei os altíssimos e já canônicos exemplos dos boicotes à cantora Anita Bryant e à marca de suco de laranja da qual era garota-propaganda, e o boicote às empresas de ônibus promovido por Martin Luther King e NAACP; também simpatizo com a causa Palestina encarnada no BDS Movement. Ativismo, seja ou não digital, requer planejamento, empenho e resistência.
Como exatamente isso se liga ao caso de Eller? Os usuários das redes sociais atuam a partir da taquicardíaca, passionalíssima lógica das viralizações—como se se sentissem, muitas vezes, obrigados a comentar um assunto extremamente recente—; mais calmamente comentado, o caso de Eller não renderia caldo: a polícia concluiu que a influencer de direita mentiu em seu depoimento, e que a briga foi ocasionada por ciúmes da namorada, não por sentimentos homofóbicos. Acreditemos ou não na versão da polícia, uma vez aventada, o caso esfriou. As discussões que se seguiram imediatamente às primeiras notícias perderam fôlego e feneceram.
Embora militantes de direita e de esquerda se engalfinhem ferozmente a partir de suas opiniões e sentimentos acerca da notícia, nada resulta disso: a discussão é esquecida poucos dias depois, e alguma nova besteira viraliza e divide opiniões, enquanto assuntos mais sérios e opiniões mais ponderadas—incapazes de angariar o tipo de engajamento que excita os algoritmos—são deixados à míngua. Semelhante panorama impossibilita a construção de ações a mais longo prazo, e se coloca, em meu entendimento, como um dos principais desafios a serem vencidos pelo ativismo digital.
A lógica dos engajamentos digitais—como muito corretamente já pontuou o comediante Sacha Baron Cohen—é uma lógica de emoções fortes, desregradas; uma lógica de ódio e medo. Nossa dificuldade em expressar mais coordenados sentimentos em relação a uma lésbica de direita, vítima de um ataque suposta ou potencialmente homofóbico, é uma reação de usuários das redes sociais. Como usuários, somos vítimas de nossas mais fortes (e, por vezes, mais baixas) emoções; somos levados a comentar quase que obrigatoriamente o último assunto da moda, a produzir e reproduzir memes a seu respeito, ignorando questões mais importantes, deixando de lado o distanciamento necessário para uma reflexão mais ponderada, e portanto demonstrando imaturidade e pouca propensão à organização e resistência necessárias à construção de um ativismo que se contraponha não somente às bandeiras conservadoras, mas também a seu principal instrumento de difusão: a lógica passional e frívola de engajamentos em redes digitais. Quando agimos como usuários das redes, deixamos de atuar como militantes; deixamos que nossos piores sentimentos unam-se a nossas mais corretas idéias, atropelando-as, e fragmentando nossa capacidade de ação.