O inglês sempre tem mais palavras que o português?
Em princípio, a pergunta pode parecer uma afronta matemática; afinal, mais e menos não são conceitos relativos, e um texto com 1000 palavras terá sempre mais palavras que outro com 100. Não obstante, se observarmos casos individuais, veremos que não é bem assim.
Nosso senso comum sobre a língua inglesa—nossa experiência construída como falantes ou aprendizes—nos mostra que é uma língua com um léxico bastante amplo. Hordas e hordas de empréstimos latinos (diretos ou indiretos) e não-latinos—acumulados através de um processo de dominação, incialmente colonial, posteriormente econômico-cultural—expuseram o inglês a uma inflação lexical bastante incomum.
Mesmo assim, às vezes, quem fica at a loss for words é o inglês, que, por mais superavitário que seja, não conterá todos os recortes vocabulares possíveis para as línguas naturais. Assim sendo, fui prestando atenção a várias instâncias nas quais é o português que lexicaliza distinções de sentido ausentes no inglês (sim, sei que você lembrou imediatamente de saudade, mas gostaria de focar em outros exemplos).
- be e can: estamos tão acostumados com esses verbos de inglês iniciante que não nos damos conta do trabalho que deve ser distinguir entre ser e estar, ou entre poder e conseguir.
- know: significa tanto saber quanto conhecer.
- call: outro verbo iniciante cujas múltiplas traduções nos passam despercebidas, sendo traduzido tanto pelo genérico chamar quanto pelo específico telefonar.
- help: qualquer falso iniciante sabe que significa socorro, e aprenderá (se já não o souber) que significa socorrer, mas talvez leve um tempo para aprender que significa igualmente auxílio/auxiliar, e se surpreenda ao vê-lo traduzido por servir-se (e.g. de comida) e que, por isso, um helping é uma medida de alimento que se põe no prato.
- light: talvez a mais poética polissemia da lista; estamos tão acostumados ao termo que nunca reparamos que expressa um substantivo (luz) e um adjetivo (leve); num sentido derivado do segundo (reduzido em calorias), já nem pode mais ser considerado termo estrangeiro, sendo mais propriamente um estrangeirismo.
- play: quanto mais corriqueiro o verbo, ao que parece, maiores as chances de sua polissemia estar lexicalizada em outras línguas; este verbo acumula não só os sentidos que separamos entre brincar e jogar, mas outros como interpretar (uma peça musical, um papel teatral) e mesmo tocar—num sentido derivado da interpretação musical: iniciar um aparelho que reproduza registros em áudio.
- wheel: designa qualquer objeto circular que gira (roda), incluindo a parte sobre a qual se locomovem os veículos (pneu) e mesmo a que o motorista usa para conduzir (volante).
- eye: em português, usamos olho quando nos referimos ao órgão físico (e.g. ter olhos castanhos) e à(s) vista(s) quando nos referimos ao mesmo órgão, relativamente ao sentido da visão (e.g. dor no olho, uma dor física x dor na vista, uma dor que dificulta enxergar).
- ear: as partes interna e externa do órgão responsável pela audição, em português, são respectivamente conhecidas como orelha e ouvido.
- table: designa tanto o móvel (mesa) quanto um tipo de representação esquemática de dados (tabela).
- straw: unidos talvez pelo formato, designa a palha e o canudo.
- wall: não só designa indistintamente muro e muralha (pense-se na Muralha da China ou The Great Wall of China), mas também parede.
- jealous(y): talvez nos pareça curioso que o mesmo adjetivo (e seu substantivo correspondente) designem tanto a inveja quanto o ciúme; não obstante, o inglês conta com envious/envy, que designa exclusivamente a inveja, embora talvez sem a mesma conotação forte de raiva.
- insist: capta perfeitamente o significado do cognato insistir, mas não faz jus ao mais corriqueiro teimar; note-se que a diferença é expressa alhures em inglês: quem teima (um teimoso) seria stubborn, o que é diferente de ser insistent/insistente.
A lista acima ignora coringas lexicais como get e take, pois fazem parte de uma vasta gama de expressões mais ou menos fixas em inglês, assumindo, por vezes, significados tão genéricos que praticamente se perdem quaisquer especificidades; focamo-nos, aqui, em exemplos do tipo 1:2 ou 1:3: para cada termo em inglês, há dois ou mais em português.
Outra coisa importante é a banalidade de muitos exemplos: recheado de distinções lexicais entre termos mais complexos, e contendo pares de quase-sinônimos de base latina e saxã (e.g. sentiment x feeling, drunk x intoxicated), o inglês deixa de fazer muitas distinções elementares que uma língua como o português apresenta. Assim sendo, os exemplos podem parecer mais triviais para nós (que fazemos estas distinções) que para anglófonos nativos (que as precisariam aprender e diferenciar em uso). A banalidade mesma de alguns casos nos impede vê-los, portanto desmistificar a idéia de que nossa língua seria mais pobre ou desprovida de palavras—sensação comum quando somos nós que temos de contender com as distinções vocabulares de uma língua estrangeira.